“POR QUE MEU POVO ME VENDEU?



“POR QUE MEU POVO ME VENDEU?

- Retrato da escravidão moderna –
(o mundo possui, hoje, 40 milhões de escravos... e ninguém se importa)

Recentemente chegou-me às mãos uma reportagem da BBC sobre um projeto extraordinário da Produtora Cine Group para a série televisiva Brasil: DNA África. O arquiteto baiano, Zulu Araújo foi um dos 150 negros selecionados pela Produtora para fazer um exame de DNA e identificar suas origens africanas. Ele descobriu ser descendente do povo Tikar, de Camarões e para lá viajou, de forma a conhecer os seus antepassados.  

 “Meu sobrenome, Mendes de Araújo, é português. Carrego o nome da família que escravizou meus ancestrais, pois o 'de' indica posse. Também carrego o nome de um povo africano, Zulu”. “Passei no vestibular para arquitetura. Éramos dois negros numa turma de 600 estudantes – isso numa cidade onde 85% da população tem origem africana. Salvador é uma das cidades mais racistas que eu conheço no mundo”.

(link da reportagem, ao final desta crônica)

Na audiência que teve com o Rei, em seu palácio, Araújo lhe questionou sobre algo que sempre o angustiou: o por que deles haverem permitido ou participado da venda dos seus ancestrais para o Brasil. O constrangimento foi enorme inclusive para o exitante tradutor. O Rei imediatamente encerrou o encontro, mas no dia seguinte mandou lhe chamar. A resposta incluiu um pedido de desculpas e, em seguida, justificou-se dizendo que as vendas dos “seus” foram necessárias, caso contrário todos teriam sido mortos. Araújo entendeu a resposta como política, mas a aceitou por entende-la sincera.

(É importante compreender, caro leitores, que em Tikar fica uma das bases do grupo terrorista muçulmano Boko Haram,  de ideologia jihadista, muito admirado pelo povo local. Segundo a ONU, o Boko Haram é  responsável por inúmeros massacres e  ataques contra populações civis de todas as religiões, na Nigéria, Camarões , Níger e Chade. Eles também escravizam seus sequestrados)

Momento em que o Zulu confronta o rei tikar sobre a venda de seus antepassados (Cine Group)

Por documentos críveis, sabemos que a escravidão era uma prática comum entre os africanos subsaarianos antes do envolvimento de árabes e europeus.

Érica Turci (historiadora formada pela USP) afirma que algumas sociedades africanas viviam da guerra para a captura de pessoas para serem vendidas a outros povos que necessitavam de escravos.

O historiador francês Fernand Braudel afirma que a escravidão era endêmica na África e fazia parte da estrutura da vida cotidiana.

No final de outubro de 1810, Adandozan, Rei do Daomé (hoje Benin), mandou seus embaixadores para o Brasil, com uma carta e vários presentes para D. João XVI. Eles foram recebidos pelo Conde de Arcos. Seu objetivo era a hegemonia sobre a escravidão transatlântica, não aceita pelo Príncipe Regente, tendo em vista seus compromissos com os ingleses.

Em 1840, o rei Gezo, sucessor de Adandozan, declarou:

“O tráfico de escravos é o princípio dominante do meu povo. É a fonte e a glória de sua riqueza... a mãe nina a criança para dormir com notas de triunfo sobre um inimigo reduzido à escravidão ...”

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Desde milênios, em todos os cantos do mundo, a escravidão foi uma prática comum e aceita por diversos povos. A história nos mostra que o homem sempre escravizou outro homem...

A escravidão se operava nas primeiras civilizações (como a Suméria, que remonta a 3500 a.C).  E encontra-se presente no Código de Hamurabi da Mesopotâmia (1860 a.C),

O tráfico de pessoas na Bíblia faz parte desta realidade histórica. Atravessa toda a Sagrada Escritura; dos patriarcas ao primeiro século da era cristã.

Abraão diz para Sara, sua esposa: "Eis que a tua escrava está em teu poder, usa dela como te aprouver" (Gn 16,6), inclusive vendê-la.

Havia escravidão na Mesoamérica pré-colombiana (sociedades Maia, Astecas e Império Inca), nos Tehuelche da Patagônia, Comanche do Texas, Caraíbas da Dominica e até no seio dos românticos Rapa Nui. Todos, absolutamente todos, foram escravagistas.

Os admiradores de Villegenon poderão ficar frustados, mas o missionário huguenote/protestante Jéan de Léry,,autor do livro “História de uma Viagem”, editado em 1578 (um dos melhores livros que já lí, na vida) é considerado uma raridade testemunhal sobre o Brasil do século XVI. O autor  garante que ao desembarcar por essas bandas, viu índios trabalhando como escravos na construção da Ville Henry (onde hoje é Niterói), para a criação da França Antártica. Os escravos, pelo seu relato, foram doados pelos Tupinambás.

 

O historiador americano Robert Davis, professor de história na Universidade Ohio State, afirma que na África existiram mais de 1 milhão de brancos europeus, escravizados por traficantes norte africanos de escravos entre 1530 e 1780, através de pirataria costeira no Mediterrâneo e no Atlântico.

Mas existem historiadores que pensam diferente, um deles é o Rodrigo Prates. Ele entende que a ideia, por trás dessas afirmações, busca minimizar ou anular as conquistas sociais dos negros brasileiros, como as das cotas étnico-raciais.

Giulio Rosati, Inspeção dos Recém Chegados, 1858-1917 (belezas circassianas)


Existe uma vertente política que acusa os novos pesquisadores de “revisionistas históricos” (no sentido pejorativo). Em muitos casos ela tem razão... até que provas irrefutáveis sejam apresentadas, aí, todas as argumentações de tal vertente tornam-se inaceitáveis. Nulas. Assim, o Professor Robert Davis e outros historiadores, necessitam provar o que afirmam.

O fato é que racismo no Brasil ‘ancora-se’ em mais de três séculos de escravidão e por teorias racistas (lembram da ‘eugenia’?) que fizeram parte da construção da identidade nacional. As sequelas estruturais são mais que visíveis. Conforme dados do IBGE de 2018, 56,10% da população brasileira declarou-se como preta ou parda. No entanto, quando observamos dados do mercado de trabalho, 68,6% dos cargos gerenciais são ocupados por brancos, e somente 29,9%, por pretos ou pardos.

O Brasil avançou em sua legislação e o Artigo 1º do Estatuto da Igualdade Racial é tão abrangente (poucos se atentam para isso) que em sua definição, considera conduta racista até mesmo ofensa à origem nacional ou étnica do ofendido. Em suma, chamar pejorativamente alguém de branquelo ou gringo, também pode ser considerada atitude racista.



Lembremos do fato recente no jogo entre Bahia x Flamengo (20/dez/2020), onde Gérson acusou o volante do Bahia, “Índio” Ramirez, de injúria racial.

Em tese, a penalidade a ser imposta ao colombiano também se aplica ao atacante rubro negro Bruno Henrique, pela expressão xenofóbica “gringo de m...”, identificada através de leitura labial (ironicamente, pela própria consultoria contratada pela equipe flamenguista).

No “contexto legal civilizatório” brasileiro, ninguém pode admitir-se superior a outrem, sob qualquer hipótese.

Os fatos ocorridos no jogo nos trazem uma situação jurídica peculiar, onde a mesma lei que penaliza o agressor, o protege como ofendido. Talvez, os dois jogadores fiquem muito tempo sem tocar na ‘bola’, profissionalmente, além da possibilidade de multa e reclusão entre 1 e 3 anos; pelo artigo 140, § 3º, do Código Penal.

Se me permitem uma aposta pessoal, eu diria que esse caso não prosperará. Gérson admitirá que não compreendeu adequadamente o idioma do colega jogador e o Bahia convencerá o Ramirez a não formalizar denúncia por injúria racial.

Às vezes, o que pode parecer hipócrita para uns, posicionam-se como saída honrosa para todos. Acordos que beneficiam as partes, tanto podem caminhar ao lado como ao largo da Lei.

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Voltemos por um instante ao que ocorre hoje, no denominado mundo contemporâneo.

O tráfico de seres humanos continua sendo um problema internacional. Dados de 2013, mostram que cerca de até 40 milhões de pessoas foram escravizadas. Estima-se que 20% da população da Mauritânea (entre homens, mulheres e crianças encontrem-se escravizados).



Inacreditavelmente, a escravidão perdura em países como EUA, Reino Unido, China e Rússia, Nigéria,  Gana, Togo,  Sudão, Benim e até no Brasil. Apenas na Índia estima-se 8 milhões de escravos. Os números da China não são claros, mas estima-se na casa dos milhões.

A Organização Internacional do Trabalho e a Fundação Walk Free confirmam que há mais escravos atualmente do que em qualquer outra época histórica, numa estimativa de 1 a cada 200 pessoas (a maioria na Ásia),

Nós, ‘vozes’ civilizadas confortavelmente apenas voltadas ao passado (independente da legítima necessidade às causas sociais e humanitárias dele decorrentes); efetivamente, por nos ser indolor, nem ligamos...

Paulo Portela

CEO da Medikus Sistemas de Saúde e fundador do Base Social (apoio emocional a trabalhadores)

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Fontes consultáveis:

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160113_dna_africano_zulu_jf_cc

http://www.edgardigital.ufba.br/?p=1956

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1980-85852013000200010

https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/historia-da-escravidao-exploracao-do-trabalho-escravo-na-africa.htm

https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_da_escravid%C3%A3o

https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/21454/21454_3.PDF

http://www.edgardigital.ufba.br/?p=1956

https://pt.wikipedia.org/wiki/Escravid%C3%A3o_branca

https://racismoambiental.net.br/2016/12/25/os-negros-tambem-escravizaram-brancos-fato-historico-ou-falacia/

https://www1.folha.uol.com.br/folha/reuters/ult112u32556.shtml

https://fr.wikipedia.org/wiki/Boko_Haram

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4 Comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Paulo, perfeito seu artigo. Inclusive posso citar os casos clássicos da Nike (que até hj, tentam minimizar os danos da época), Zara e os mais recentes da cocholates Hershey's e da Construtora MRV que foi condenada este ano, por trabalho semi-escravo em 2011, 2013 e 2015 em suas obras no Rio de Janeiro.

    A verdade é que ninguém se importa com isso na hora do consumo (nunca vi alguém negar o doce ou cancelar a compra do seu imóvel, por tais fatos dirigidos às marcas.

    O que nos faz acreditar que tudo a nossa volta ou até a nossa própria vida é uma gangorra manipulada pelos meios de comunicação.

    Exemplo da hipocrisia:

    Terrorismo na Franca com poucas mortes sobe a hasteg "play for Nice e Jé Suis Charlie", porém, Epidemia do Ebola na África com mais mil não teve comoção, se quer foi noticiado.
    cohttp://www.abrat.adv.br/index.php/noticias/3415-mrv-e-condenada-em-r$-67-milhoes-por-trabalho-escravo

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  3. Ricardo, vejo as tuas observações como bastante adequadas.
    Muito obrigado pelo retorno.
    Abração fraternal!

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  4. Paulinho Portela ,comecei a ler e nao consegui parar ! Sensacional! Parabéns
    Grande abraço

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