Pirulitos ou Cigarros

Terceira história da série imperdível: QUATRO MULHERES CURTAS de textos concisos, mas densos de sentimentos e dramas. Acompanhe aqui em Cronistas de WhatsApp!


Pirulitos ou Cigarros

Todo santo dia, o irritante choro da pequena Ângela deixava sua mãe embaraçada diante dos vizinhos. Quando contrariada, a criança imediatamente mudava de cor. Seus olhinhos azuis avermelhavam e transbordavam um pranto que também escorria pelas narinas e fugia pelos poros. Não havia muito que fazer diante do fenômeno, então sua mãe recorria aos pirulitos coloridos, guardados dentro de um pote de emergência. O açúcar acalmava a menina, distraía sua birra e devolvia sua cor.

Todo gesto de Ângela visava recompensa ─ foi assim que aprendeu enquanto crescia. Logo, os pirulitos não mais supririam sua insatisfação. Já adolescente, passou a chorar para dentro as lágrimas que ninguém via. Não transpirava ou mudava de cor, apenas empalidecia. Como um espelho d’água de um traiçoeiro rio, sua pele clara escondia uma corrente de emoções.

               *          *           *

Todos na rua se lembram da tarde em que Ângela surgiu no portão de sua casa. Com as curvas de seu recente corpo de mulher dando formas ao vestido, lançou nos lábios um tímido sorriso e disse “boa-tarde!”. A resposta veio em coro, como se fosse ensaiada pelas vizinhas que trocavam fuxicos no portão ao lado, pelos aposentados que jogavam carta adiante e pelos meninos que, sem perceber, interromperam uma pelada improvisada no asfalto. A partir daquele momento todo bairro notou e se encantou com a beleza da mulher recente.

Além do azul-encanto, havia mistério nos olhos daquela moça. Anos de choro escorrido pra dentro formaram oceanos em sua alma, onde habitavam sereias silenciosas: Seus olhos eram o portal de acesso ao lar das sereias que ameaçam cantar. Nos demorados banhos matinais, Ângela se assemelhava às sereias... Ah, se todas resolvessem cantar!...

Quatro Décadas Depois...

Na tumultuada e irregular calçada de Madureira uma mulher tropeça, perde o equilíbrio e cai. Um prestativo rapaz a socorre prontamente enquanto um senhor recolhe sua bolsa e os embrulhos de compras espalhadas no chão. Assustada, a mulher não dizia nada quando um comentário jocoso foi ouvido entre os passantes:

─ Olha só: Ela deixou cair tudo menos o cigarro que continua na mão!

Outro moço, com roupa de enfermeiro, a amparou perguntando se estava tudo bem. Estava, a mulher respondeu mais com os olhos do que com a voz. A débil mulher tinha um forte cheiro de cigarro e um pouco de descuido, mas... Aqueles olhos azuis...

─ Nossa!... ─ pensou o rapaz ─ Essa mulher deve ter sido muito linda!

─ Obrigado meu filho! Eu me chamo Ângela. ─ a mulher falou finalmente:

─ Sabe, quando eu era criança caía no choro, por muito menos que isso. Então minha mãe me dava um pirulito para compensar. Hoje fumo cigarros quando perco o equilíbrio, e como você pôde ver, isso não me impede de cair de novo...

Ângela falou por uns vinte minutos para o jovem hipnotizado pelo seu olhar de oceano. Depois agradeceu de novo e seguiu seu caminho. De repente, sentiu uma vontade incontida de cantar. Foi quando jogou fora os cigarros e entoou o canto das sereias. A emoção do canto fez seus olhos liberarem anos e anos de pranto. Contagiado, o céu não se conteve e, soluçando raios, fez descer copiosa chuva que alagou Madureira. Enquanto Ângela sumia na curva da esquina os seus últimos cigarros foram arrastados pela água lamacenta e engolidos pelo ralo. #


(Leia também a Parte 1 - Ana Sentiu Saudade, Parte 2 - Ana Cíclica. Aguarde a quarta e última parte desta série, aqui nos Cronistas)

Abraço!
Bira

(Postagem de WhatsApp, sem revisão de provaveis erros)

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